09 setembro 2009

O Jogo Imortal II

O XADREZ SOBREVIVEU. O jogo tivera um importante destaque na corte do antecessor do califa Al-Amin, e iria consumir vorazmente a atenção de seu sucessor, e a do califa que o sucedeu, e a do que sucedeu a este. Muitos séculos antes de contaminar a Europa feudal cristã, o xadrez já era parte indelével da paisagem próxima ao Tigre e ao Eufrates. Esse simples jogo, composto de um universo inteiro de complexidades e de caracteres, exigia dos camponeses, soldados, filósofos e soberanos uma interminável quantidade de tempo e de energia. Em troca, oferecia intuições únicas sobre os esforços dos seres humanos.
E assim, contra todas as probabilidades, ele perdurou. Os jogos, via de regra, não perduram. Assim como chegam, eles se vão. No século VIII, os irlandeses gostavam muito de um jogo de tabuleiro chamado fidchell. Muito antes disso, no terceiro milênio a.C., um jogo semelhante ao gamão, chamado senet, era muito popular entre os egípcios. Os romanos eram atraídos pelo duodecim scripta, jogado com três dados de osso e pilhas de discos. Os vikings, no século X, eram obcecados por um jogo chamado hnefatafl , no qual um rei protagonista tentava escapar de uma fileira de inimigos para alguma das extremidades do tabuleiro. Os gregos antigos tinham o petteia e o kubeia. Esses e outras centenas de jogos, outrora populares, há muito desapareceram. Prendiam a imaginação do público em sua época e lugar, e depois, por algum motivo, perderam força. As gerações passaram, carregando seus costumes consigo, ou culturas dominadoras impuseram novas ideias e passatempos, ou o povo simplesmente se cansou, desejando algo novo. Muitos jogos caíram num esquecimento tão absoluto que nem sequer puderam deixar alguma marca coerente no registro histórico. Por mais que tentassem, historiadores decididos não conseguiram ainda descobrir as regras básicas de um grande cemitério de jogos do passado.
Contrastemos tudo isso com o xadrez, jogo que nem os editos religiosos, nem o oceano, ou a guerra, ou a barreira dos idiomas pôde deter. Nem mesmo a impiedosa acumulação do tempo, que no final remove e desmancha a maioria das coisas, pôde sequer dar um leve puxão no feroz ímpeto do xadrez. Em 1786, Benjamin Franklin escreveu: “Durante inúmeros períodos ele foi a diversão de todas as nações civilizadas da Ásia, dos persas, dos indianos e dos chineses. A Europa o conhece há mais de mil anos; os espanhóis o divulgaram por suas regiões da América, e ultimamente ele começa a fazer sua aparição aqui nesta nação.”
O jogo chegaria por fim a todas as cidades do mundo, em mais de 1.500 anos de história contínua – um fio comum de cadeias de peões, forquilhas de cavalos e humilhantes xeques-mates que percorreriam as vidas de Karl Marx, do papa Leão XIII, de Arnold Schwarzenegger, rei Eduardo I, George Bernard Shaw, Abraham Lincoln, Ivã o Terrível, Voltaire, rei Montezuma, Rabbi Ibn Ezra, Guilherme o Conquistador, Jorge Luis Borges, Willie Nelson, Napoleão, Samuel Beckett, Woody Allen e Norman Schwarzkopf. Do Palácio do Portão Dourado, em Bagdá, até o Castelo de Windsor, em Londres, e às mesas de hoje à margem do lago na North Avenue Beach, em Chicago, o xadrez formaria um laço através da história de forma surpreendente e estimulante.
Como pôde um jogo durar tanto, e agradar tão amplamente, ao longo de tão variadas circunstâncias de tempo, geografia, língua e cultura? A resistência não é, evidentemente, uma magnífica realização em si, mas sim um indício estimulante de que alguma coisa profunda estava se passando, uma conexão catalisadora entre esse “jogo” e o cérebro humano. Um outro sinal é que o xadrez não só era jogado, como também integrado nas vidas criativas e profissionais de artistas, lingüistas, psicólogos, economistas, matemáticos, políticos, teólogos, cientistas da computação e generais. Tornou-se uma metáfora popular e flexível das ideias abstratas e dos sistemas complexos, e um instrumento eficaz pelo qual os cientistas podiam melhor compreender a mente humana.
O notável alcance desse jogo começou a contaminar meu próprio cérebro depois da visita de um velho fantasma familiar, no outono de 2002. Minha mãe me entregara alguns recortes de jornais velhos e desbotados sobre Samuel Rosenthal, o seu bisavô – meu trisavô –, um pequenino judeu polonês que emigrara para a França em 1864, tornando-se ali um dos seus lendários mestres de xadrez. Segundo o folclore familiar, Rosenthal causara muito boa impressão e/ou, de algum modo, merecera a gratidão de um dos Napoleões, pelo que foi recompensado com um magnífico relógio incrustado de pedras preciosas. Ao que parece, ninguém na família realmente viu esse relógio, mas todos ouviram falar dele. Quatro gerações depois, essa história, contada a um menino do subúrbio de Ohio, pareceu exótica e nebulosa o suficiente para que sua mente entrasse em plena atividade. Durante anos eu pedira a minha mãe para me contar mais sobre o grande S. Rosenthal e seu relógio perdido.
Enquanto vasculhava os registros das façanhas do pai do pai da mãe de minha mãe, imaginando quais espetaculares (e ainda ocultas) informações se teriam filtrado através das gerações, também fiquei mais uma vez em contato com o próprio jogo, que eu não jogava desde os tempos de ginásio (e mesmo então, apenas o fiz umas poucas vezes). Hesitante em algumas dezenas de partidas com amigos em casa e com desconhecidos pela internet, descobri que estava tão ambivalente em relação ao xadrez quanto 20 anos atrás – encantado com sua elegância e intrigado por sua profundidade, embora também desencorajado diante das enormes dificuldades envolvidas até mesmo em jogos moderadamente sérios. Ser promovido de "patzer" (é uma gíria que significa jogador fraco e amadorístico, ou seja, o nosso popular pato) a uma condição de mera competência requer centenas de horas intermináveis, não apenas de prática como também de estudo de volumes inteiros sobre teoria introdutória, problemas de abertura e de estratégia. Anos de obsessiva dedicação ao jogo poderiam propiciar-me finalmente o ingresso em torneios razoavelmente respeitados, onde sem dúvida eu seria eliminado em pouco tempo por algum menino de dez anos, cheio de autoconfiança e com a língua ferina. O xadrez é como um pico longínquo e inatingível, que fica cada vez mais íngreme a cada passo que damos.
Fui repelido também, francamente, pela proibitiva atmosfera das regras implacáveis, do jargão só para iniciados e do tom geral agressivo e desagradável, presentes até mesmo nos jogos mais casuais. Lembro-me de Bobby Fischer ao proclamar: “O xadrez é uma guerra sobre um tabuleiro; o objetivo é esmagar a mente do adversário.” Fischer não estava sozinho ao assumir vigorosamente a brutalidade do xadrez. O jogo muitas vezes significa tanto demolir a vontade e a auto-estima do adversário quanto implementar uma estratégia superior. Não há derramamento de sangue (normalmente), mas a ferida pode ser real. O laço histórico entre um desempenho enxadrístico de alto nível e uma instabilidade mental surge como mais um intrigante aspecto do jogo e de seu poder. “Aqui há nada menos que um silencioso duelo entre duas máquinas humanas, usando e abusando de todas as faculdades da mente”, escreve Alfred Kreymborg, mestre de xadrez, defendendo-se. “É uma atividade guerreira nas mais misteriosas selvas da personalidade humana.”

2 comentários:

  1. Aron,
    obrigado pela dica do livro.
    Muito bons estes textos e corrobora com nossa atualidade diante de governantes/exadristas.
    Abraço

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  2. indicaçes CRISTAL---1.GERENTE DO IPE E GOECOCHEA 2.VIL METAL E GO AHEAD 3.REALITY FAMOUS E FANTASMA 4.FON E GAROTO DO SUL 5.MARINA-TOP E INNOCENT GIRL 6.LITTLE KISS E NIGRICIA MANSA 7.OSKLEN E NEGO VÉIO 8.PERFECT FINGERS E REI JAZZ 9.OUTRA JULYANN E JACK CHICA .ACEITO CAXINHA.aceito patrocínio para o hipódromo BEN-HUR.

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