08 setembro 2009

O Jogo Imortal

Trago para meus poucos leitores enxadristas a introdução do livro escrito por David Shenk, O Jogo Imortal ( o que o xadrez nos revela sobre a guerra, a arte, a ciência e o cérebro humano ). Como é um texto um pouco longo para uma postagem, dividirei em três partes. Bom divertimento, lembrando que quem não é enxadrista também vai gostar.

"ENORMES PEDRAS, cabeças decepadas e potes com óleo em chamas
choviam sobre Bagdá, a capital do vasto império islâmico, enquanto os
seus esgotados defensores corriam para reforçar os portões, as trincheiras
e as maciças muralhas de pedra que circundavam os muitos palácios
de tijolo e madeira da cidade fortificada. Gigantescas catapultas – as
manjaniq – bombardeavam as estruturas distantes, enquanto catapultas
menores e mais precisas – as arradah – acertavam os indivíduos com
pedras um pouco maiores que laranjas. As flechas cruzavam o ar em
blocos compactos, e os cavaleiros de elite golpeavam os homens a pé
com suas espadas e lanças. “Os cavalos … pisoteiam as vísceras dos valentes
jovens”, lamentava-se o poeta Al-Khuraymi, “e os seus cascos lhes
partem os crânios.” Fora da principal muralha circular da cidade – de
30 metros de altura, 45 de largura e quase dez quilômetros de circunferência
–, os soldados avançavam com aríetes, enquanto outros pelotões
cortavam as linhas de fornecimento de alimentos e reforços. Em meio a
barcos naufragando e plataformas em chamas, os cadáveres flutuavam
à deriva pelo rio Tigre.
A impenetrável “Cidade da Paz” desmoronava. Nos 50 anos decorridos
desde sua fundação, em 762 d.C., a jovem Bagdá rivalizara com
Constantinopla e Roma quanto ao prestígio e à influência. Era um grande
e fértil eixo de arte, ciência e religião, e um fervilhante centro para as
rotas de comércio que chegavam até o longínquo interior da Ásia Central,
da África e da Europa. Mas, no final do verão de 813 d.C., depois de
quase dois anos de guerra civil (entre irmãos, para piorar), a iluminada
capital islâmica tornara-se uma ruína sangrenta, faminta e fumegante.
Diante da desordem, todo ser humano necessita desesperadamente
de ordem – alguma forma de administrar, se não o mundo material, pelo
menos a compreensão do mundo. Sob essa luz, talvez não seja realmente
uma surpresa que, enquanto estrondeavam sobre Bagdá as pedras, as
flechas e os cascos dos cavalos, o núcleo mais protegido da cidade abrigasse
uma outra espécie de batalha. Dentro do santuário interno da circular
cidade imperial, em toda segurança por trás de três espessos muros e de
muitos portões e guardas, sob a brilhante cúpula verde do Palácio do
Portão Dourado, Muhammad al-Amin, sexto califa do Império Abássida,
descendente espiritual (e distante parente consangüíneo) do profeta
Maomé, soberano de um dos mais vastos domínios da história do mundo,
jogava xadrez com Kauthar, seu eunuco favorito.
Um mensageiro de confiança irrompeu pelos aposentos reais trazendo
notícias urgentes e nada boas. Um relatório sobre novas e humilhantes
derrotas, dentro e fora da cidade, devia ser feito ao califa. Na
verdade, a sua própria segurança encontrava-se em risco.
Mas Al-Amin não quis ouvi-lo. Acenou para que o apavorado emissário
se fosse dali.
“Ó Comandante dos fiéis!”, implorou o mensageiro, segundo Jirjis
al-Makin, o historiador islâmico medieval. “O momento não é para
brincadeiras. Tenha a bondade de levantar-se para tratar de assuntos da
mais séria importância.”
De nada adiantou. O califa estava totalmente absorto no tabuleiro.
Um jogo de xadrez em andamento – como aprende rapidamente toda esposa
de jogador – é um cosmo em si mesmo, completamente isolado de
um choro de bebê, ou de um convite erótico, ou de uma guerra. Embora o
tabuleiro tenha apenas 32 peças e 64 casas, dentro daquele limitado espaço
o jogo tem profundidade e possibilidades quase infinitas. Alguém de fora,
observando distraído, poderia achar incompreensível essa intensidade.
Mas quem quer que já o tenha jogado algumas vezes compreende como
esse jogo pode ser tão absorvente. Muitas vezes, no meio de uma partida
interessante, é quase como se a realidade se virasse pelo avesso: os movimentos do jogo parecem ser a única coisa substancial, enquanto qualquer insinuação do mundo exterior soa como uma irritante irrelevância.
Quanto mais problemático estiver o mundo exterior, mais poderosa poderá ser essa dinâmica invertida. Talvez por isso o califa Al-Amin, sentindo que as suas horas já estavam contadas, preferisse embeber-se com os detalhes da batalha no tabuleiro de xadrez do que com os relatos do calamitoso sítio à sua cidade. No tabuleiro, ele podia ter a visão da ação total. No tabuleiro, podia compreender claramente os fatos passados e planejar cuidadosamente os futuros. No tabuleiro, ainda seria possível vencer. “Paciência, meu amigo”, respondeu calmamente o califa ao mensageiro, que embora estivesse apenas a alguns passos de distância, parecia estar em um mundo à parte. “Vejo que dentro de alguns lances vou colocar Kauthar em xeque-mate.” Pouco depois, Al-Amin e seus homens foram presos. O sexto califa abássida, vitorioso na sua última partida de xadrez, foi decapitado em seguida."

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