Um conto sobre xadrez especialmente para os poucos enxadristas que de vez em quando passam por aqui:
Estamos na posição final da partida que me fez abandonar o xadrez. As pretas acabam de jogar seu peão a três Torre do Rei e o condutor das brancas, Saemisch, abandonou o jogo. O mais cruel e curioso é que o autor do lance final tinha seu primeiro nome idêntico ao meu.
A partir do momento em que vi esta partida, um problema, mais de ordem filosófica do que enxadrística, se apoderou do meu cérebro: se entre dois grande mestres destacados, em apenas 25 lances, e com quase todas as peças em jogo, o condutor das brancas se encontrou em zugzwang (palavra alemã que significa literalmente "quem joga perde" ), decididamente algo estava errado nas leis que regem o jogo.
Essa dúvida foi se avolumando e se transformou em aflição generalizada no momento em que me vi frente a frente com um adversário em um Torneio Aberto realizado no Clube de Xadrez de São Paulo. Para realizar o primeiro lance, conduzindo as peças brancas, demorei nada menos do que 30 minutos e passo a relatar aqui todos os pensamentos tortuosos, dignos de um demente, que impediam que eu efetuasse a primeira jogada. Aquele maldito zugzwang não saía da minha cabeça:
“Sentei em frente ao tabuleiro e tentei me tranquilizar, mas era inútil. Sem que nenhuma peça tivesse se movido, eu já me considerava perdido, procurava uma saída mas aquilo era um verdadeiro beco sem saída. Meu destino parecia traçado de antemão.
Tinha fortemente arraigado o dogma de Philidor, segundo o qual os peões são a alma do xadrez. Podem parecer pequenos e insignificantes, inclusive fáceis de sacrificar, mas determinam inexoravelmente o desenvolvimento da partida com a estrutura que apresentam. Perder um peão ou situá-lo em uma casa errada poderia me acarretar uma derrota acachapante. O mais dramático do xadrez é que ele não permite com que se retroceda com os peões.
Meditando sobre isto, voltei a contemplar a posição e reparei que, se avançasse qualquer um dos meus brancos peões, me expunha a toda classe de perigos. Avançar um peão supõe, por um lado, aproximá-lo das forças inimigas e, por outro, debilitar casas próprias, deixar buracos atrás de si. Cheguei a conclusão que não poderia avançar nenhum peão, até que meu rival o fizesse. E aí caiu um dogma universal do xadrez. Quem goza da vantagem inicial é o bando preto e não as peças brancas, pois as brancas estão obrigadas a avançar algo e consequentemente debilitar-se. Aos poucos foi se apoderando de mim a ideia de que mesmo sem ter feito lance, já me encontrava em zugzwang. Céus, quem inventou este jogo se assegurou de que não ficassem casas livres atrás das peças. À sua frente os peões infantes , atrás o abismo.
Súbito, me veio a solução! Meus cavalos, sempre eles, podiam galopar depressa e saltar os obstáculos mais altos sem estropear a falange de peões brancos e tendo em conta que a segurança do meu rei é o objetivo primordial do jogo (outro dogma quebrado), julguei conveniente aproximar dele justamente o que lhe estava mais distante e finalmente fiz meu primeiro lance: C3BD e olhando sadicamente para meu oponente pensei “ pode baixar o rei que agora você está perdido”.
Minha euforia não chegou a durar um minuto, pois meu adversário retrucou singelamente C3BD também, e retribuindo o mesmo olhar que eu lhe havia lançado momentos antes, se deleitou muito mais ao perceber que a minha euforia havia se transformado em pavor.
A tensão não poderia perdurar por mais tempo. Tinha feito apenas um lance e o esgotamento era como se tivesse jogando uma partida que passasse de cem lances. Com raiva pensei: “ se esse imitador de lance alheio tá pensando que pode transferir todo peso da evolução enxadrística para cima de mim, está muito enganado”. Já refeito do golpe, respondi com o único lance que , segundo meus critérios, não perderia: C1C.
Desnecessário dizer que a partida terminou em empate por repetição de jogadas e com todas as peças na posição inicial.”
Tanto eu, como quem comigo jogava, fomos eliminados sumariamente do Torneio, por prática antidesportiva e por total desrespeito com os demais participantes e com o público presente. Onde já se viu, empatar na posição inicial, significa mais ou menos, fazendo uma analogia com as corridas de cavalos, que todos os jóqueis puxem seus conduzidos e nenhum chegue ao disco.
Hoje, passado mais de 15 anos do fato, temo que tudo não tenha passado de uma alucinação, pois toda vez que tentei mencionar o ocorrido com enxadristas que estiveram presentes ao Torneio, ninguém lembrava nem da partida, nem do nome ou fisionomia do meu adversário. Era como se a partida não houvesse acontecido. Ao resgatar a planilha da partida, percebi com espanto que o tempo se encarregara de esmaecer por completo o nome do condutor das peças negras. Porém, no meu íntimo sei, que naquele dia, Aron Correa teve o prazer de jogar com Aron Nimzowitsch.
Por fim digo, que se é verdade o que afirma Borges no seu famoso poema El Golem, de que “nas letras de rosa está a rosa e na palavra Nilo está todo o Nilo”, infiro que os lances C3BD e C1C encerram em sí, toda a história de um jogo chamado xadrez.
* O texto em vermelho tem trechos adaptados do conto Zugswang de Joan Sánchez